Lembranças de Província





Nesse tempo a vida era triste,
a chuva caía devagar, quando não era inverno ainda,
os cafés cheiravam a tabaco e havia, no chão,
beatas e papéis de bolos. Pela porta entreaberta,
às vezes, entrava um cão vadio, que corria as mesas,
e nenhum criado se preocupava a enxotá-lo. Do
lado dos bilhares, ouvia-se o crepitar seco das bolas, e
o virar dos marcadores era acentuado com sólidas pancadas,
que sobressaltavam os leitores de jornais: folhas
mal impressas, com notícias do campo e o registo de vidas
funcionárias, promoções no Registo Civil e na hierarquia da
Câmara, ou mudanças de casa, para onde homens
de escuro subiam os móveis embrulhados
em mantas; depois, despiam-nos em salas de chão de madeira
encerada de novo, por onde o sol ainda entrava livre-
mente. Então, grandes espelhos reflectiam as janelas sem
cortinas; e, se olhasse para o fundo deles, talvez
se visse a imagem de mulheres furtivas, olhando a sua nudez
rápida em vidros limpos de pó. Imagens proibidas, que
só se podiam guardar no fundo de olhos mudos
como os lábios dessas mulheres, quando passavam em frente das
montras do café, sem um sorriso, levando com elas
o que nunca se há-de saber


NUNO JÚDICE
Poesia reunida


voz - Cristina Paiva

música - Bernardo Sassetti

sonoplastia e fotografia - Fernando Ladeira

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