Cabo da boa esperança



Nasci pra ser ignorante
Mas os parentes teimaram
(e dali não arrancaram)
em fazer de mim estudante.

Que remédio? Obedeci.
Há já três lustros que estudo.
Aprender, aprendi tudo,
mas tudo desaprendi.

Perdi o nome às Estrelas,
aos nosso rios e aos de fora.
Confundo fauna com flora.
Atrapalham-me as parcelas.

Mas passo dias inteiros
a ver um rio passar.
Com aves e ondas do Mar
tenho amores verdadeiros.

Rebrilha sempre uma Estrela
por sobre o meu parapeito;
pois não sou eu que me deito
sem ter falado com ela.

Conheço mais de mil flores.
Elas conhecem-me a mim.
Só não sei como em latim
as crismaram os doutores.

No entanto sou promovido,
mal haja lugar aberto,
a mestre: julgam-me esperto,
inteligente e sabido.

O pior é se um director
espreita pla fechadura:
lá se vai a licenciatura
se ouve as lições do doutor.

Lá se vai o ordenado
de tuta e meia por mês,
Lá fico eu de uma vez
um Poeta desempregado.

Se me não lograr o fado,
porém, com tais directores,
e de rios, aves e flores
somente for vigiado,

enquanto as aulas correrem
não sentirei calafrios,
que flores, aves e rios
ignorante é que me querem.

SEBASTIÃO DA GAMA
Cabo da Boa Esperança



voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

Actuação escrita



Pode-se escrever

Pode-se escrever sem ortografia
Pode-se escrever sem sintaxe
Pode-se escrever sem português
Pode-se escrever numa língua sem saber essa língua
Pode-se escrever sem saber escrever
Pode-se pegar na caneta sem haver escrita
Pode-se pegar na escrita sem haver caneta
Pode-se pegar na caneta sem haver caneta
Pode-se escrever sem caneta
Pode-se sem caneta escrever caneta
Pode-se sem escrever escrever plume
Pode-se escrever sem escrever
Pode-se escrever sem sabermos nada
Pode-se escrever nada sem sabermos
Pode-se escrever sabermos sem nada
Pode-se escrever nada
Pode-se escrever com nada
Pode-se escrever sem nada

Pode-se não escrever


PEDRO OOM
A única real tradição viva
Antologia da poesia surrealista portuguesa
Assírio e Alvim


voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

Entardecer



Já não há perfumes de vida na taça do meu sexo
Se quisesses conhecer, agora, o meu sabor mais íntimo,
terias de beber, com os teus lábios,
a água das minhas lágrimas.

LUÍSA DACOSTA
A maresia e o sargaço dos dias
Ed. Asa

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

Brincadeira



Ando a correr atrás do Outro,
como fazem
dois meninos brincando num jardim...

… até me achar de repente,
sem saber como, o Outro lá da frente,
que vai fugindo de mim.

SEBASTIÃO DA GAMA
Serra-Mãe
Ed. Arrábida


voz - Cristina Paiva

música - Radicalfashion

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Margarida Ramos

X. Green god



Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.

Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos,
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.

Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.

E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava.

EUGÉNIO DE ANDRADE
Poesia e prosa – 1º Volume, 3ª edição aumentada,
Círculo de Leitores


voz - Cristina Paiva

música - Eleni Karaindrou

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Isabel Teles de Menezes

Do sangue



O sangue não carboniza os sons para que os aguarde -
As brasas na garganta
A voz não se funde mesmo sendo
O mineral que fere

Acrescento terra sucessiva sobre os lábios
Mas não encontro o sopro por onde de novo
O barro possa aspirar-me ao segredo
Do húmus. E necessito tanto
Do subsolo. Como se fora
O grão ou os sismos

DANIEL FARIA
Poesia
Ed. Quasi


voz - Cristina Paiva

música - Penguin Cafe Orchestra

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira

Idílio de recomeço - XII



(O soneto que só errado ficou certo)

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.

Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.

Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.

Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicação de luas e saliva.

JOSÉ GOMES FERREIRA
Poeta Militante, 2º Volume
Morais Editores
Círculo de Poesia


voz - Cristina Paiva

música - Brian Eno

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira