concurso pepQ? - Vencedores

Chegou ao fim o nosso concurso pepQ?

Parabéns às vencedoras e obrigado a todos quantos participaram.

Aqui fica o podium com respectivos prémios:

1º lugar - Helena Ramos

prémio – 4 CDs áudio;
dois com todos os poemas do concurso,
outro com parte dos outros poemas do blogue
e um terceiro com a gravação áudio do nosso espectáculo “A de Mozart”.

2º lugar - Sofia Pereira

prémio – 3 CDs áudio;
dois com todos os poemas do concurso
e outro com parte dos outros poemas do blogue.

3º lugar - Ana Isabel Duarte

prémio – 2 CDs áudio
com todos os poemas do concurso.

Agradecemos que as vencedoras nos contactem via email com a morada onde desejam receber os prémios.

Classificação pepQ?

  • Helena Ramos - 29 pontos
  • Sofia Pereira - 25 pontos
  • Ana Isabel Duarte - 22 pontos
  • Isabel Teles de Menezes - 17 pontos
  • Maria Almira Soares - 12 pontos
  • Ana Eustáquio - 9 pontos
  • Ana Margarida Ramos - 7 pontos
  • Helena Marreiros - 3 pontos
  • Carlos do Rosário - 2 pontos
  • Margarida Teodora - 1 ponto
  • Paula Saramago - 1 ponto
  • Raquel Vasconcelos - 1 ponto

Aqui poderão consultar a grelha das pontuações.

Aos homens do cais




Plantados como árvores no chão
ao alto ergueis os vossos troncos nus
e o fruto que produz a vossa mão
vem do trabalho e transparece à luz

Nenhum passado vale o dia-a-dia
Sonho só o que vós me consentis
Verdade a que de vós só irradia
- Portugal não é pátria mas país

RUY BELO
Todos os poemas
Ed. Círculo de Leitores


voz - Cristina Paiva

música - Ryuichi Sakamoto

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

Sonetos Românticos IV



Reúno coisas comovidamente:
Da mãe, o xaile azul, do namorado
Um beijo no Relvão, da avó demente,
O anjo que cantava no telhado;

Da ilha, a hora lassa que ao poente
Rendia o mar a um sono nacarado,
De febris coisas, já no Continente,
Num clarão de ametistas, o amado,

Dos meus passos da cruz, as cicatrizes;
Da minha estrela errante outros países;
Do breve encontro, um rosto que se esfuma...

Coisas que em busca da sua ligação
Reúno. Absurda sensação
De as juntar e não ter coisa nenhuma.

NATÁLIA CORREIA
Sonetos Românticos
Ed. Dom Quixote


voz - Cristina Paiva

música - Múm

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

Devagar no centro do fogo - 10



entra devagar no centro do fogo

guarda para dias mais trémulos e inseguros
as perguntas os medos a dor
que sobra sempre do desejo

entra como quem morre no centro do fogo

e bebe a cinza
que desenha os contornos da cama
onde os joelhos se despem do frio
que os prende à terra

entra como quem arde no centro do fogo

e deita na água do meu corpo
as sementes acesas no tempo
que por única herança terás de mim

entra devagar no centro do fogo

e
lavra-me

ALICE VIEIRA
Dois corpos tombando na água
Ed. Caminho


voz - Cristina Paiva

música - Passengers

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira

Incêndio



se conseguires entrar em casa e
alguém estiver em fogo na tua cama
e a sombra duma cidade surgir na cera do soalho
e do tecto cair uma chuva brilhante
contínua e miudinha — não te assustes

são os teus antepassados que por um momento
se levantaram da inércia dos séculos e vêm
visitar-te

diz-lhes que vives junto ao mar onde
zarpam navios carregados com medos
do fim do mundo — diz-lhes que se consumiu
a morada de uma vida inteira e pede-lhes
para murmurarem uma última canção para os olhos
e adormece sem lágrimas — com eles no chão

AL BERTO
Horto de Incêndio
Ed. Assírio e Alvim


voz - Cristina Paiva

música - Sigur Rós

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

Soneto pateta III



Entrou um serafim
                              no meu jardim
que cheiro a alecrim…

Da rosa carmim
                              para o jasmim
o canto do clarim
tramp’lim
                 do arlequim
                              p’ra mim.


SALETTE TAVARES
366 poemas que falam de amor
Org. Vasco Graça Moura
Ed. Quetzal




voz - Cristina Paiva

música - John Cage

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

Hora de ponta



Apanhar um lugar a esta hora é uma sorte, poder olhar
pela janela e fingir que tenho imunidade diplomática,
que estou de lá do vidro com o hálito das folhas, o sabor
a hortelã e um ar fresco interrompido pela velha senhora
a quem cedo o assento e um sorriso enquanto me agradece
de nada, de ir agora em pé empurrada, de cá do vidro
a apanhar uma overdose de realidade com o bafo quente
do homem gordo na minha orelha, com a mão livre
apertada contra o peito contra o visco da hora apinhada
na minha pele pública, na minha pele de todos.
No banco em frente uma mulher afaga a neta com o sorriso
doce e cansado, os olhos brilhantes; a candura intacta
toma-me toda como se eu fosse um anjo
descendo à terra com um corpo real para que a minha pele
receba a dádiva da tua, aceite os cheiros de um dia de trabalho,
o calor excessivo, a proximidade insustentável e leia no teu rosto
cada mandamento nos solavancos que nos atiram uns para
os outros. No teu rosto à hora de ponta aprendo a compaixão
até sair na próxima paragem com um suspiro de alívio.

ROSA ALICE BRANCO
366 poemas que falam de amor
Org. Vasco Graça Moura
Ed. Quetzal



voz - Cristina Paiva

música - Max Richter

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

Nada direi



Nada direi do crocodilo.
É um bicho tímido, reservado, a quem a realidade magoa os dentes.

JOSÉ ALBERTO OLIVEIRA
Animal, animal – Um bestiário poético
Ed. Assírio e Alvim



voz - Cristina Paiva

música - Penguin Cafe Orchestra

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

A rola



O cheiro acre da penugem nova
da jovem rola fiel, solitária,
dos próximos pinheiros exilada,
entontecia os seres que a rodeavam
para escutar a paz do seu arrulho
- os seres tão diversos de três reinos,
o gato negro, a pedra e eu no mundo.

FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO
Animal, animal – Um bestiário poético
Ed. Assírio e Alvim


voz - Cristina Paiva

música - Brian Eno

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Maria Almira Soares

A flor que havia na água parada - I



Antes este veio
descia sem pressa
não era tão frio
como hoje parece.

Era um rio quente
sem fundo nem fim
ausente-presente
bem dentro de mim.

Quase que parado
via-o eu às vezes
em dia feriado
de seis em seis meses.

Os barcos quietos
boiavam, luziam,
fechados, secretos,
e logo seguiam.

Os velhos, fumando,
olhavam, sem ver,
o rio passando
sem nunca correr.

A virgem tranquila,
terrena, bisonha,
mete os pés na argila,
olha a água e sonha.

MARIA JUDITE DE CARVALHO
A flor que havia na água parada
Ed. Europa-América

voz - Cristina Paiva

música - Kangding Ray

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Maria Almira Soares

Dizem que é jardim



Dizem que é jardim
porque repousa

E diz-se também que se ilumina
em pausas
repentinas

Mas que dizer da trama
em movimento?

Que dizer do vento?
Que se prepara o incêndio
aqui na folha

ANTÓNIO RAMOS ROSA
A mão de água e a mão de fogo – Antologia Poética
Ed. Fora do texto


voz - Cristina Paiva

música - Bjork

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Isabel Teles de Menezes

Dedicatória



Não
te ofereço
a rosa
mas
o nome
da
rosa

que
serviria
meu amor
oferecer-te
a rosa
se dura
a rosa
pouco mais
que o tempo
em que te
digo rosa?

Não te
ofereço
a rosa
mas
o nome
meu amor
do amor
da rosa
eco
do que te digo
repetido
e mais rosa
te ofereço
se é
rosa
o que redigo

(rosa por cem vezes repetido)

do que
te dar
a rosa
que
não
dizendo
então
de amor
desdigo

RITA TABORDA DUARTE
Poemas
Ed. Leya


voz - Cristina Paiva

música - James Horner

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

12



pudesse eu plantar giestas nos teus dias. e cantar,
como uma cigarra no estio, para o teu desassossego.

JOSÉ MANUEL MENDES
Rosto Descontínuo 1983-1986
Ed. Presença


voz - Cristina Paiva

música -Henry R. Bishop

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

Explicatio



O gesto mais simples,
capaz de ordenar tudo,
foi o que não fizemos.

JOSÉ MÁRIO SILVA
Luz Indecisa
Ed. Oceanos


voz - Cristina Paiva

música - Brian Eno

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

As vozes



A infância vem
pé ante pé
sobe as escadas
e bate à porta

- Quem é?
- É a mãe morta
- São coisas passadas
- Não é ninguém

Tantas vozes fora de nós!
E se somos nós quem está lá fora
e bate à porta? E se nos fomos embora?
E se ficámos sós?

MANUEL ANTÓNIO PINA
Todas as Palavras, poesia reunida
Edição: Assírio & Alvim


voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira

ninguém pode saber que este poema é teu



ninguém pode saber que este poema é teu.
ninguém pode saber. ninguém pode saber
que este poema. ninguém. este poema é teu.
sou uma coisa da qual se tem vergonha.

JOSÉ LUÍS PEIXOTO
Apeadeiro, Revista de Atitudes Literárias, N.º 1
Quasi Edições


voz - Cristina Paiva

música - John Cale

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira

O Poema



I

Esclarecendo que o poema
é um duelo agudíssimo
quero eu dizer um dedo
agudíssimo claro
apontado ao coração do homem

falo
com uma agulha de sangue
a coser-me todo o corpo
à garganta

e a esta terra imóvel
onde já a minha sombra
é um traço de alarme

LUIZA NETO JORGE
Terra Imóvel
Assírio & Alvim


voz - Cristina Paiva

música - Burial

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Paula Saramago

O poema falante



Ser poema é ser alguma coisa
que habitualmente se é sem dar por isso.

Poema puro, de mais nada,
aqui estou eu a dizer que o sou –
– tanto bastará p'ra me negarem.

JORGE DE SENA
Post-Scriptum II
2º volume
Co-edição Moraes Ed. E Imprensa-Nacional Casa da Moeda



voz - Cristina Paiva

música - Johann Sebastian Bach

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

O cão atómico



1.
Este cão tem folhas nas orelhas,
Com quatro talos:
Mas o que este cão deveria ter era calos,
E só tem olhos e ossos
E morrinha num dente!
Mas, meu Deus, este cão
Quase o diria meu irmão:
Parece gente!

VITORINO NEMÉSIO
Obras Completas
II Volume
Ed. Imprensa Nacional Casa da Moeda



voz - Cristina Paiva

música - Goldfrapp

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

Se entrando no retrato a sobrancelha



Se entrando no retrato a sobrancelha
destoa da harmonia de um passado
e o brinco pendente de uma orelha
dorme tranquilo em estojo acolchoado,

se a cadeira ali nova agora é velha
e a névoa do peitilho foi bordado
nesse tempo que em pouco se assemelha
ao tempo que hoje em dia nos é dado,

não quer dizer que a vida tenha sido
inútil e perversa ou desfocada
do retrato só visto e nunca lido

por quem da vida saiba a senha errada.
Terei apenas eu sobrevivido
para ler tal silêncio em voz calada.

MARIA ALBERTA MENÉRES
O jogo dos silêncios
Ed. Hugin


voz - Cristina Paiva

música - Art Hickmans Orchestra

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira

Epígrafe



Eu sou
só eu e os meus livros
e a minha música e as minhas ruas em cruz
e um mar sombrio e verde, longe-longe...

E mais nada.

JORGE DE SENA
Post-Scriptum II
2º volume
Co-edição Moraes Ed. e Imprensa-Nacional Casa da Moeda


voz - Cristina Paiva

música - Alvo Noto

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira

Com luz de sal



Com luz de sal se constrói
Linda Marta o teu sorrir
Saleiro de sol que rouba
O juizo a quem te vir

URBANO TAVARES RODRIGUES
Horas de Vidro
Ed. Dom Quixote


voz - Cristina Paiva

música - Paul Kalkbrenner

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

Este ministro é um mentiroso



Este ministro é um mentiroso
que agonia quando ele discursa
e se fosse só isso: bale sem jeito
às meias horas seguidas – e não pára!

bem-aventurados os duros de ouvido
a quem o céu abrirá as portas
desliguem p.f. o microfone
ou então tirem o país da ficha

FERNANDO ASSIS PACHECO
Respiração Assistida
Ed. Assírio e Alvim


voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

Amor e outros crimes em vias de perdão



deito-me à sombra das tuas pernas
e o corpo arde em todos os movimentos
que não ousaste prolongar
na toalha branca da minha pele

deste lado a dor
é completamente minha
e por assim dizer inútil

era capaz de jurar
que nem me viste

ALICE VIEIRA
Dois corpos tombando na água
Ed. Dom Quixote


voz - Cristina Paiva

música - Penguin Cafe Orchestra

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

Natureza-Morta


A meia-noite deu-me as doze gotas,
O meu mal vai dormir:
Olham-me, vãs, as minhas botas,
Que eu a tão longe faço ir.

É murcha a roupa que componho,
Com minha forma, atrás da porta:
Espelho a que me envergonho!
Minha natureza morta!

VITORINO NEMÉSIO
Obras Completas
II Volume
Ed. Imprensa Nacional Casa da Moeda


voz - Cristina Paiva

música - Múm

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

Variação



Se sorrio, ris.
Se entristeço, choras.
Feliz, infeliz,
a vida melhoras.

Que vária se faz!
Infeliz, sorrio.
Feliz, chego às
lágrimas em fio.

ALBERTO DE SERPA,
A poesia de Alberto de Serpa
Ed. Nova Renascença


voz - Cristina Paiva

música - Shed

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Maria Almira Soares

Estribilhos



No interior da música

o silêncio
que regaço procura?

Que interior é esse

onde a luz
tem morada?

E há um interior,

assim como o caroço
dentro do fruto?

E como entrar nele?

É como num corpo?

EUGÉNIO DE ANDRADE
Poesia
Ed. Fundação Eugénio de Andrade


voz - Cristina Paiva

música - U2

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

Álbum – XIX



O menino ri na sombra
contente de ver os pés nus.

Ver?

Sim, ver.
Na treva.

Ainda confunde as palavras
com a luz.

JOSÉ GOMES FERREIRA
Poeta Militante, Vol. II
Moraes Ed.


voz - Cristina Paiva

música - Penguin Cafe Orchestra

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Isabel Teles de Menezes

Não toques nos objectos imediatos



Não toques nos objectos imediatos.
A harmonia queima.
Por mais leve que seja um bule ou uma chávena,
são loucos todos os objectos.
Uma jarra com um crisântemo transparente
tem um tremor oculto.
É terrível no escuro.
Mesmo o seu nome, só a medo o podes dizer.
A boca fica em chaga.

HERBERTO HELDER
Poesia Toda
Ed. Assírio e Alvim


voz - Cristina Paiva

música - Gas

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Margarida Ramos

Circo do Mundo



E de repente
com Mozart
chegaram as estrelas.

Próximo tudo
neste circo do mundo.

Uma voz
acompanha
o eclipse do Sol.

E não há angústia:
aqui o universo
foi criado pelo homem.

ANTÓNIO OSÓRIO
Planetário e zoo dos homens
Ed. Presença

voz - Cristina Paiva

música - W. A. Mozart
Academy of Saint Martin-in-the-fields - dir. Sir Neville Marriner - soprano. Felicity Lott

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Isabel Teles de Menezes

Poema da auto-estrada



Voando vai para a praia
Leonor na estrada preta
Vai na brasa de lambreta.

Leva calções de pirata,
vermelho de alizarina,
modelando a coxa fina
de impaciente nervura.
Como guache lustroso,
amarelo de indantreno
blusinha de terileno
desfraldada na cintura.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.

Agarrada ao companheiro
na volúpia da escapada
pincha no banco traseiro
em cada volta da estrada.
Grita de medo fingido,
que o receio não é com ela,
mas por amor e cautela
abraça-o pela cintura.
Vai ditosa, e bem segura.

Como um rasgão na paisagem
corta a lambreta afiada,
engole as bermas da estrada
e a rumorosa folhagem.
Urrando, estremece a terra,
bramir de rinoceronte,
enfia pelo horizonte
como um punhal que se enterra.
Tudo foge à sua volta,
o céu, as nuvens, as casas,
e com os bramidos que solta
lembra um demónio com asas.

Na confusão dos sentidos
já nem percebe, Leonor,
se o que lhe chegou aos ouvidos
são ecos de amor perdidos
se os rugidos do motor.

Fuge, fuge, Leonoreta.
Vai na brasa, de lambreta.

ANTÓNIO GEDEÃO
Máquina de Fogo
Obra Poética
Ed. João Sá da Costa


voz - Cristina Paiva

música - Eternal basement

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Margarida Ramos

Cabo da boa esperança



Nasci pra ser ignorante
Mas os parentes teimaram
(e dali não arrancaram)
em fazer de mim estudante.

Que remédio? Obedeci.
Há já três lustros que estudo.
Aprender, aprendi tudo,
mas tudo desaprendi.

Perdi o nome às Estrelas,
aos nosso rios e aos de fora.
Confundo fauna com flora.
Atrapalham-me as parcelas.

Mas passo dias inteiros
a ver um rio passar.
Com aves e ondas do Mar
tenho amores verdadeiros.

Rebrilha sempre uma Estrela
por sobre o meu parapeito;
pois não sou eu que me deito
sem ter falado com ela.

Conheço mais de mil flores.
Elas conhecem-me a mim.
Só não sei como em latim
as crismaram os doutores.

No entanto sou promovido,
mal haja lugar aberto,
a mestre: julgam-me esperto,
inteligente e sabido.

O pior é se um director
espreita pla fechadura:
lá se vai a licenciatura
se ouve as lições do doutor.

Lá se vai o ordenado
de tuta e meia por mês,
Lá fico eu de uma vez
um Poeta desempregado.

Se me não lograr o fado,
porém, com tais directores,
e de rios, aves e flores
somente for vigiado,

enquanto as aulas correrem
não sentirei calafrios,
que flores, aves e rios
ignorante é que me querem.

SEBASTIÃO DA GAMA
Cabo da Boa Esperança



voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

Actuação escrita



Pode-se escrever

Pode-se escrever sem ortografia
Pode-se escrever sem sintaxe
Pode-se escrever sem português
Pode-se escrever numa língua sem saber essa língua
Pode-se escrever sem saber escrever
Pode-se pegar na caneta sem haver escrita
Pode-se pegar na escrita sem haver caneta
Pode-se pegar na caneta sem haver caneta
Pode-se escrever sem caneta
Pode-se sem caneta escrever caneta
Pode-se sem escrever escrever plume
Pode-se escrever sem escrever
Pode-se escrever sem sabermos nada
Pode-se escrever nada sem sabermos
Pode-se escrever sabermos sem nada
Pode-se escrever nada
Pode-se escrever com nada
Pode-se escrever sem nada

Pode-se não escrever


PEDRO OOM
A única real tradição viva
Antologia da poesia surrealista portuguesa
Assírio e Alvim


voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

Entardecer



Já não há perfumes de vida na taça do meu sexo
Se quisesses conhecer, agora, o meu sabor mais íntimo,
terias de beber, com os teus lábios,
a água das minhas lágrimas.

LUÍSA DACOSTA
A maresia e o sargaço dos dias
Ed. Asa

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

Brincadeira



Ando a correr atrás do Outro,
como fazem
dois meninos brincando num jardim...

… até me achar de repente,
sem saber como, o Outro lá da frente,
que vai fugindo de mim.

SEBASTIÃO DA GAMA
Serra-Mãe
Ed. Arrábida


voz - Cristina Paiva

música - Radicalfashion

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Margarida Ramos

X. Green god



Trazia consigo a graça
das fontes quando anoitece.
Era o corpo como um rio
em sereno desafio
com as margens quando desce.

Andava como quem passa
sem ter tempo de parar.
Ervas nasciam dos passos,
cresciam troncos dos braços
quando os erguia no ar.

Sorria como quem dança.
E desfolhava ao dançar
o corpo, que lhe tremia
num ritmo que ele sabia
que os deuses devem usar.

E seguia o seu caminho,
porque era um deus que passava.
Alheio a tudo o que via,
enleado na melodia
duma flauta que tocava.

EUGÉNIO DE ANDRADE
Poesia e prosa – 1º Volume, 3ª edição aumentada,
Círculo de Leitores


voz - Cristina Paiva

música - Eleni Karaindrou

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Isabel Teles de Menezes

Do sangue



O sangue não carboniza os sons para que os aguarde -
As brasas na garganta
A voz não se funde mesmo sendo
O mineral que fere

Acrescento terra sucessiva sobre os lábios
Mas não encontro o sopro por onde de novo
O barro possa aspirar-me ao segredo
Do húmus. E necessito tanto
Do subsolo. Como se fora
O grão ou os sismos

DANIEL FARIA
Poesia
Ed. Quasi


voz - Cristina Paiva

música - Penguin Cafe Orchestra

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira

Idílio de recomeço - XII



(O soneto que só errado ficou certo)

Se eu pudesse iluminar por dentro as palavras de todos os dias
para te dizer, com a simplicidade do bater do coração,
que afinal ao pé de ti apenas sinto as mãos mais frias
e esta ternura dos olhos que se dão.

Nem asas, nem estrelas, nem flores sem chão
- mas o desejo de ser a noite que me guias
e baixinho ao bafo da tua respiração
contar-te todas as minhas covardias.

Ao pé de ti não me apetece ser herói
mas abrir-te mais o abismo que me dói
nos cardos deste sol de morte viva.

Ser como sou e ver-te como és:
dois bichos de suor com sombra aos pés.
Complicação de luas e saliva.

JOSÉ GOMES FERREIRA
Poeta Militante, 2º Volume
Morais Editores
Círculo de Poesia


voz - Cristina Paiva

música - Brian Eno

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira

Poema inicial



Poder-me-ão entender todos aqueles
de quem o coração for a roldana
do poço que lhes desce na memória.

Se alguma coisa vi foi com o sangue.
De alguém a quem o sangue serviu de olhos poderá
falar quem o fizer de mim.

LUÍS MIGUEL NAVA
Poesia Completa 1979-1994
Ed. Dom Quixote


voz - Cristina Paiva

música - Benga & Coki

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

Rothko Brown And Grey Series, 2



O mar já não era para mim suficiente.
fazia-me falta um rio
um rio sob sombra das árvores.

É difícil a meio da música
suportar a luz do café.

Estávamos juntos
como vejo estar no palco
sob dois projectores.

Os olhos
as mãos
todo o corpo
era só o frio da noite.

JOÃO MIGUEL FERNANDES JORGE
O Roubador de Água
Ed. Assírio & Alvim


voz - Cristina Paiva

música - Maurizio Ravalico & Ollie Bown

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

Espécies Cinegéticas



O gato afaga o sol
os deuses louvam-lhe
a arte
e dão-lhe luz
para ferir a escuridão

FRANCISCO DUARTE MANGAS
Pequeno livro da terra
Ed. Teorema


voz - Cristina Paiva

música - Julio de Caro

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Margarida Ramos

Cantos indecisos – XXXI



Só tem profundo olhar o nosso sentimento.
Para se descobrir a origem duma flor,
Não basta o raciocínio, o humano pensamento,
É preciso sentir por ela um grande amor.

TEIXEIRA DE PASCOAES
Londres. Cantos indecisos. Cânticos
Assírio e Alvim


voz - Cristina Paiva

música - Haruki

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

Rio



As águas vêm de longe,
trazem o mundo,
os montes a terra as pedras
os bichos e o pólen
as folhas e a luz
a chuva o granizo
e a sede dos homens
o rumor das noites e dos dias.
Rio vivo, quase mudo,
cheio de água
cheio de terra
cheio de tudo.

JOÃO PEDRO MÉSSEDER,
Versos com reversos
Ed. Caminho


voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

Epígrafe



- A tua única tristeza não é triste, é única.
Por isso
onde encontras a razão perdemos nós a vida.

E. M. DE MELO E CASTRO
de Antologia para Inici-antes
Ed. Ausência


voz - Cristina Paiva

música - dZihan & Kamien

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira

Pretérito imperfeito





O tempo
mais dorido da gramática.
O instante
constante gesto.
Tentacular abraço da memória.


ANA GOÊS
100 poemas recolhidos


voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Maria Almira Soares

XVI



A vida
às portas da vida

e o azul masculino de um rio

Amor Ardente
de forma distinta

MÁRIO CESARINY
de Pena Capital
Assírio & Alvim


voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Marreiros

Era um redondo vocábulo



Era um redondo vocábulo
Uma soma agreste
Revelavam-se ondas
Em maninhos dedos
Polpas seus cabelos
Resíduos de lar,
Nos degraus de Laura
A tinta caía
No móvel vazio,
Convocando farpas
Chamando o telefone
Matando baratas
A fúria crescia
Clamando vingança,
Nos degraus de Laura
No quarto das danças
Na rua os meninos
Brincavam e Laura
Na sala de espera
Inda o ar educa

JOSÉ AFONSO
Venham mais cinco


Vozes - Cristina Paiva, Teresa Silva Carvalho, José Afonso

Música - Goran Bregovic e José Afonso

Sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

Encontro



Encontrei, de noite, uma esfínge.
Não me fez perguntas; nada quis de mim.
As suas asas tinham marcas roxas; as olheiras
desciam pelo rosto. Peguei-lhe nos dedos; puxei-a
para um canto. Não me lembro do que
falámos; a noite descera, há muito.

NUNO JÚDICE
de Poesia reunida 1967-2000, D. Quixote


voz - Cristina Paiva

música - Manual

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

Fala a preguiça



Eu gosto tanto, tanto ,tanto
de estar quieta, muito parada,
de fazer nada, coisa nenhuma,
e de fazer isso, que é não fazer
e de não estar, não ir, também.
Eu cá faço nada e todos
me dizem que faço isso muito bem.

Faço arroz de nada, pudim de nada
(que não é nada, está-se mesmo a ver)
e é tudo muito bom, delicioso,
só por não ser preciso fazer.

Eu faço nada, sou um nadador,
mas não daqueles que nadam mesmo,
O que é cansativo, tão maçador;
é que nadar, cá para mim,
tem um defeito insuportável:
aquele erre que está no fim .

E não digam que não faço nada
porque eu faço isso o mais que posso
e se não faço mais é porque mesmo nada
fazê-lo muito é uma maçada.
Não quero ir. Ainda é cedo.
Que pressa é essa? Não pode ser!
Deixem-me estar porque eu hoje tenho
bastante nada para fazer.


ÁLVARO MAGALHÃES
de O Brincador


música - Erik Satie

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

Poema vindo dos dias



A tua cruz senhor é pouco funcional
Não fica bem em nenhum jardim da cidade
dizem os vereadores e é verdade
E além disso os nossos olhos cívicos
ficam-se nos corpos de que nos cercaste
Saudamo-nos por fora como bons cidadãos
Submetemos os ombros ao teu peso
mas há tantos outros pesos pelo dia
E quando tu por um acaso passas
retocado pelas nossas tristes mãos
através dos pobres hábitos diários
só desfraldamos colchas e pegamos
em pétalas para te saudar
Queríamos ver-te romper na tarde
e morrem-nos as pálpebras de sono

RUY BELO
de Ruy Belo – Todos os poemas
Ed. Círculo de Leitores



voz - Cristina Paiva

música - Antonio Vivaldi

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Raquel Vasconcelos

Brincava a criança



Brincava a criança
Com um carro de bois.
Sentiu-se brincando
E disse, Eu sou dois!

Há um a brincar
E há outro a saber,
Um vê-me a brincar
E outro vê-me a ver.

Estou por trás de mim
Mas se volto a cabeça
Não era o que eu qu'ria
A volta não é essa...

O outro menino
Não tem pés nem mãos
Nem é pequenino
Não tem mãe ou irmãos.

E brinca comigo
Por trás de onde eu estou,
Mas se volto a cabeça
Já não sei o que sou.

FERNANDO PESSOA
de Poesia do Eu
Ed. de Richard Zenith para a Assírio e Alvim


voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

Poente



Final de dia, sereno, tropical.
Laivos rubros no azul do firmamento...
E o Sol lança um beijo maternal
Sobre a Terra – um beijo a seu contento - .

Passam negras levando o seu bornal,
Como se fossem levadas pelo vento,
E pirogas, temendo o vendaval,
Atravessam a baía num momento.

A ilha de palhotas e palmeiras,
Junto à ponte, a água em cachoeiras,
Tudo isto, para mim era fatal...

Olhava o mar cheio de ansiedade...
Ia com êle a mais triste saudade:
- A saudade de meus Pais, de Portugal.

ALVES REDOL
de Vida Ribatejana, 29 novembro 1931


voz - Cristina Paiva

música - Waldemar Bastos

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

Eu hei-de envelhecer assim



Eu hei-de envelhecer assim,
a fugir à frente dó tempo, sem parar,
a correr atrás do tempo, sem conseguir?
Eu hei-de envelhecer assim,
a sonhar, por ofício, um mês de Abril
cada dia mais distante?

Eu hei-de envelhecer assim,
ao tilintar de telefones e telexes
sem· silêncio para a música e para amar?

Eu hei-de envelhecer assim,
a matar, com afinco, diariamente,
o poeta que em mim ainda não morreu?

Eu hei-de envelhecer assim,
neste enredo de julgamentos e notícias,
sem a mão estendida do meu filho pequeno?

Eu hei-de envelhecer assim,
o fumo das reuniões, as pastas, os papéis
- e a alma, ferida, na gaveta fechada?

Eu hei-de envelhecer assim,
a vida escoando-se, esquálida, nesta sala,
e o sol, como um pássaro, nas árvores da Avenida?

Eu hei-de envelhecer assim,
lá fora a luz da tarde, o riso das raparigas,
o crepitar da cidade,

e eu aqui dentro,
longe de mim e do meu centro,
longe do mar, longe do sol, longe do vento?

JOSÉ CARLOS DE VASCONCELOS
de Repórter do Coração
Ed. Asa


voz - Cristina Paiva

música - Matmos

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Eustáquio

A minh'Alma fugiu...



A minh'Alma fugiu pela Torre Eiffel acima,
- A verdade é esta, não nos criemos mais ilusões -
Fugiu, mas foi apanhada pela antena da T.S.F.
Que a transmitiu pelo infinito em ondas hertzianas…

(Em todo o caso que belo fim para a minha Alma!...)

MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO
de Poemas completos
Ed. Planeta Agostini a partir da Edição original da Assírio e Alvim


voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

Purezas Fónicas



Um som que fosse
um ah de mais espanto:
filho a nascer,
crisálida a romper
em borboleta,
ou travessa de assado
explodindo no fogão

Um som que, estilhaçando
garrafa de cristal,
pulverizasse igual
o mais humilde canjirão
de vinho

onde a vida se faz
e as coisas brilham,
sem prova
de escansão

ANA LUÍSA AMARAL
de Inversos
Ed. D. Quixote

voz - Cristina Paiva

música - Gyorgy Ligeti

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Eustáquio

Noite de Verão



Quando é no Verão das noites claras e faz calor dentro da gente,
... aquela menina casadoira, que mora junto ao largo, vem à varanda ver a Lua.

Roçando o corpo, devagar,descem por ela as mãos da noite:
sente-se nua. Sente-se nua, na varanda, já tão senhora do seu destino, sem medo às

estrelas nem às mãos da noite
— mas baixa os olhos se algum homem passa...


MANUEL DA FONSECA
de Obra Poética


música - Pascal Comelade

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

Estatística



Quando eu nasci havia em Portugal
(em Portugal continental
e nas ridentes,
verdes e calmas
ilhas adjacentes)
uns seis milhões e umas tantas mil almas.
Assim se lia
no meu livrinho de Corografia
de António Eusébio de Morais Soajos.
Hoje, graças aos progressos da Higiene e da Pedagogia,
já somos quase dez milhões de gajos.

ANTÓNIO GEDEÃO
de Obra Poética
Ed. João Sá da Costa

voz - Cristina Paiva

música - Luiz Costa

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Isabel Teles de Menezes

O apanhador de cogumelos



O mais difícil não é distinguir
entre um boleto pão-de-ló e um

boleto-de-satanás o mais difícil
não é andar quilómetros e quiló-

metros por uma floresta e chegar
ao fim com os pés enxutos

O mais difícil é não sucumbir
à beleza desse mundo que se

alimenta de detritos em putre-
facção e onde não há flores

nem frutos.

JORGE SOUSA BRAGA
de O poeta nú
Ed. Assírio & Alvim

voz - Cristina Paiva

música - FSOL

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Margarida Teodora

O contar (te)



Regressar ao centro
no centro
do teu corpo

e aí
poder adormecer
como nos contos de fadas

MARIA TERESA HORTA
de Minha mãe meu amor
Ed. Rolim

voz - Cristina Paiva

música - Sigur Rós

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Carlos do Rosário

Perdigão perdeu a pena



Perdigão perdeu a pena:
não há mal que não lhe venha.

Perdigão, que o pensamento
subiu em alto lugar,
perde a pena de voar,
ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
asas com que se sustenta:
não há mal que lhe não venha.
Quis voar a u'a alta torre,
mas achou-se desasado;
e, vendo-se depenado,
de puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
lança no fogo mais lenha:
não há mal que lhe não venha.

LUÍS VAZ DE CAMÕES
de Lírica Antologia
Ed. Livraria Popular de Francisco Franco


voz - Cristina Paiva

música - Max Roach

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

Soneto do soneto



Desata-se-me o verso no primeiro
no segundo de vento vai vestido
no terceiro de mar e marinheiro
no quarto está perdido está perdido.

Recupero-o no quinto sem sentido
no sexto deito-o à sombra de um sobreiro.
No sétimo com Dante digo: «Guido
sê tu no oitavo verso companheiro.»

Porque não espero de voltar no nono
leva-me O´Neill no décimo a um terceto
que aponte já no onze o sul e o sal.

Ao décimo segundo chega o sono.
No treze está a chave do soneto
mas nem sempre o catorze é o final.

MANUEL ALEGRE
de Poesia, Volume II (Sonetos do Obscuro Quê)
Ed. D. Quixote

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Isabel Teles de Menezes

Catorze versos



O primeiro é assim: fica de parte.
No segundo já posso prometer
que no terceiro vai haver mais arte.
Mas afinal não houve... Que fazer?

Melhor será calar, pois que dizer
nem no sexto conseguirei destarte.
Os acentos errados é favor nao ver;
nem os versos errados, que também sei hacer...

Ó nono verso porque vais embora
sem que eu te sublime neste décimo?
Ao décimo-primeiro dediquei uma hora.

Errei-o. Mas que importa se a poesia,
mesmo que o não errasse, já não vinha?
É este o último e, como os outros, péssimo...

ALEXANDRE O'NEILL
de Alexandre O'Neill – Poesias Completas, Abandono Vigiado
Ed. Assírio e Alvim

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Isabel Teles de Menezes

A tempo



A tempo entrei no tempo,
Sem tempo dele sairei:
Homem moderno,
Antigo serei.
Evito o inferno
Contra tempo, eterno
À paz que visei.
Com mais tempo
Terei tempo:
No fim dos tempos serei
Como quem se salva a tempo.
E, entretanto, durei.

VITORINO NEMÉSIO
de Vitorino Nemésio, Boletim Cultural, VII Série, Dezembro de 1992,
Ed. Fundação Calouste Gulbenkian

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

Todas as cartas de amor são ridículas



Todas as cartas de amor são
Ridículas.
Não seriam cartas de amor se não fossem
Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,
Como as outras,
Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,
Têm de ser
Ridículas.

Mas, afinal,
Só as criaturas que nunca escreveram
Cartas de amor
É que são
Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia
Sem dar por isso
Cartas de amor
Ridículas.

A verdade é que hoje
As minhas memórias
Dessas cartas de amor
É que são
Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,
Como os sentimentos esdrúxulos,
São naturalmente
Ridículas.)

ÁLVARO DE CAMPOS
de Poesia dos outros Eus,
Ed. Assírio e Alvim

voz - Cristina Paiva

música - Funki Porcini

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Ramos

O amor em linguagem de computador (versão 2)



Percorro com os dedos o teclado
e acaricio nele a tua pele
que imagino morena e macia.

Envolvo com o olhar o monitor aceso
e procuro aí os teus olhos
que suponho escuros e ardentes.

Passeio com o rato no tapete
e sinto os teus lábios no meu corpo,
vagarosamente deslizando
e deixando nele o sabor que imagino em ti.

MARIA CARLOS LOUREIRO
de Acasos e Mistérios
Quetzal Editores

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Isabel Teles de Menezes

Legenda



Nada garante que tu existas
Não acredito que tu existas

Só necessito que tu existas

DAVID MOURÃO-FERREIRA
de David Mourão-Ferreira, Serviço de Bibliotecas e apoio à leitura
Ed. Fundação Calouste Gulbenkian

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

Soneto quebrado




Já um gesto mais teu apazigua
o campo largo, a terra sossegada.
Grita uma ave no mar. Um quase nada
Aguentará, logo, nos céus, a Lua.

A meus olhos pesados se insinua
A presença dos anos desejada.
É já, no casto amor, curva fechada
A minha longa espera unida à tua.

Demora a Primavera a quem semeia,
O Verão faz palha de umas ervas verdes.
Perde quem pesca os passos pela areia.

Tudo o que nunca havíamos de ter des-
faz a lenta e aérea tessitura.
Nossa alma é breve. Poesia pura.

VITORINO NEMÉSIO
de Boletim Cultural, VII Série, Dezembro de 1992, Ed. Fundação Calouste Gulbenkian

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

Canção infantil



Era um amieiro.
Depois uma azenha.
E junto
um ribeiro.

Tudo tão parado.
Que devia fazer?
Meti tudo no bolso
para os não perder.

EUGÉNIO DE ANDRADE
de Poesia – Eugénio de Andrade, Primeiros Poemas, Ed. Fundação Eugénio de Andrade

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira

A salvação do mundo



Não existe num verso nada de útil à salvação do mundo.
O poema não pode ter mais do que uma casa, paredes
caiadas de branco, os azulejos a rebaterem o sol contra
a sombra, dizendo-llne o seu lugar. O poema é o meu pai

em sofrimento na cama do hospital, as mãos inúteis que
lhe afagam a dor, estas mãos tão inúteis percorrendo os
versos ao som das palavras. O poema é circunstância de lugar

em imagens atiradas ao chão, reduz à sombra o sol. A casa
essencial, a do poema, memória e salvação de um homem.
O mundo é útil de poesia. Todos os versos são possíveis.


JORGE REIS-SÁ
de Biologia do Homem, Ed. Quasi

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira

Autopsicografia



O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama um coração.

FERNANDO PESSOA
de Poesia do Eu, Ed. Assírio e Alvim

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira

Esta janela vai dar àquela ...



Esta janela vai dar àquela
janela se o sistema for compatível
e a drive funcionar.
Clicando aqui um outro mundo acede,
com milhares de milhões de sítios a explorar.
Navegando procuro esse destino
onde seja possível voltar a encontrar
o lugar do repouso que no labirinto houve
e o teu rosto por certo procurou.
A luz que me cegar e me chegar
do écran luminoso talvez diga
que o incerto paradeiro em que te encontras
é mais que o prolongamento da ausência
em que te vi na derradeira vez.
O olhar liquefeito sob os ferros.

AMADEU BAPTISTA
de Apeadeiro – Revista de atitudes literárias
Ed. Quasi

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Isabel Teles de Menezes

Camões, grande Camões



Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar co'o sacrílego gigante;

Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és, mas... oh, tristeza!...
Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.

BOCAGE
de Obras Escolhidas, Ed. Círculo de Leitores

voz - Cristina Paiva

música - Carlos Paredes

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

Flashback




No verão, à noite, as nuvens de mosquitos
caíam sobre as casas. Eu via-os, de volta
das lâmpadas, formando uma névoa agitada
pelo brilho fraco da electricidade. Vinham
dos arrozais, dos pântanos, dos rios estagnados
pelo calor; mas nunca soube para onde iam
quando, passada a noite, a madrugada surgia
limpa e branca, como as casas da aldeia.

Nesse verão, muitas coisas se passaram:
alguns velhos morreram; começaram as obras
na igreja, e as lages com inscrições antigas
deram lugar a um chão de madeira; o
cinema ambulante trouxe alguns filmes
de capa e espada, mas o rapaz salvou-se
sempre; e uma máquina fotográfica registou
os andores que traziam à rua os santos,
na festa de agosto, de mistura com rostos
que julgava esquecidos na minha memória.
(Só o padre, segurando o cálice, mantém a
mesma expressão dura e atenta, como convém
ao representante de deus entre os homens).

Há quem diga que esses verões acabaram. De
facto, as casas já não precisam de mosquiteiros,
o cinema ambulante acabou, e o padre limita-
-se a ser o nome de uma rua, e qualquer dia
já nem isso. Mas quando as luzes se acendem,
ainda com dia, é como se uma névoa surgisse
do passado, com os mosquitos, as falhas
na corrente quando o filme ia a meio, e os
gritos que dávamos no escuro, até a luz voltar.


NUNO JÚDICE
Poesia reunida


voz - Cristina Paiva

música - Pascal Comelade

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira

Meu menino ino, ino


Dos versos que exprimem,
Estou cansado!

Das palavras que explicam,
Estou cansado!

Dos gestos que explodem,
Estou cansado!

Ai, embala-me, fútil, e frágil, no ó-ó dos teus versos,
Ai, encosta-me ao peito...!

Mais não quero que ser embalado.

JOSÉ RÉGIO
de As encruzilhadas de Deus, Ed. Presença-Atlântida

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Sofia Pereira

Quadra




Mais longe estás se houve início
mais perto se o tempo finda
e a rosa que em ti abriu
é em mim botão ainda.

AGOSTINHO DA SILVA
de Quadras inéditas, Ed. Ulmeiro

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

A caminhada




Nessa mata ninguém mata
a pata que vive ali,
com duas patas de pata,
pata acolá, pata aqui.

Pata que gosta de matas
visita as matas vizinhas,
com as suas duas patas
seguidas de dez patinhas.

E cada patinha tem,
como a pata lá da mata,
duas patinhas também
que são patinhas de pata


SIDÓNIO MURALHA
de A dança dos pica-paus


voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Ana Isabel Duarte

Guardanapos




Guardanapos       napos        à esquerda quando se começa
guardanapos        napos        desdobrados em cima das coxas
guardanapos        napos        discretos no quente do colo
guardanapos        napos        onde caem migalhas e pingos de sopa
guardanapos        napos        pontuação do passar pelos lábios
guardanapos        napos        hirtos ou fleumáticos
guardanapos        napos        franjas em mãos nervosas
guardanapos!
guardanapos!    que estranha palavra portuguesa!


SALETTE TAVARES
de Antologia da Poesia Experimental Portuguesa, Ed. Angelus Novus

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Maria Almira Soares

Cantiga, partindo-se




Senhora, partem tam tristes
Meus olhos por vós, meu bem,
Que nunca tam tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.

Tam tristes, tam saudosos,
Tam doentes da partida,
Tam cansados, tam chorosos,
Da morte mais desejosos
Cem mil vezes que da vida.

Partem tam tristes os tristes
Tam fora d’esperar bem,
Que nunca tam tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.


JOÃO ROIZ DE CASTELO BRANCO
de Os dias do amor, Ed. Ministério dos livros

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Marreiros

Antigazetilha




No comboio descendente
Vinha tudo à gargalhada,
Uns por verem rir os outros
E os outros sem ser por nada –
No comboio descendente
De Queluz à Cruz Quebrada...

No comboio descendente
Vinham todos à janela,
Uns calados para os outros
E os outros a dar-lhes trela –
No comboio descendente
Da Cruz Quebrada a Palmela...

No comboio descendente
Mas que grande reinação:
Uns dormindo, outros com sono,
E os outros nem sim nem não –
No comboio descendente
De Palmela a Portimão...


FERNANDO PESSOA
de Poesia do Eu, Ed. Assírio e Alvim

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

desvendado - Helena Marreiros

pepQ? - Regras / FAQ

Poema escrito por quem?

O que é o “pepQ”?
Um jogo.
Semanalmente publicaremos aqui, em áudio, um poema.
Se nos sobrar tempo poderemos publicar mais do que um por semana :-)
Os poemas são todos de autores portugueses e foram escolhidos segundo critérios pessoais subjectivos.

Como se joga?
O objectivo é identificar os autores dos poemas que publicamos.
Para isso deverá dar a sua resposta aqui no blog, fazendo um comentário no respectivo poema/post.
Não serão aceites respostas via email ou via facebook.
Vencerá quem primeiro publicar a resposta certa.
Cada resposta certa vale 1 ponto*.
O vencedor final será quem somar mais pontos.
Se houver empate... há empate :-)

*se passar uma semana sem que ninguém desvende a autoria de um poema, este passará a valer 2 pontos na 2ª semana, 3 pontos na 3ª semana , etc, até um máximo de 5 pontos.

Quem pode participar?
Qualquer pessoa.
É possível concorrer individualmente ou por equipa.
As equipas deverão ter um nome e todos os jogadores deverão publicar as respostas usando esse mesmo nome.

Qual a duração do jogo?
O jogo tem início no princípio de janeiro e termina no final de dezembro de 2011.

Quando são publicados os poemas?
Semanalmente à segunda-feira, mas pode muito bem dar-se o caso de ser à terça ou extraordinariamente ao domingo ou mesmo...
A hora das publicações será sempre uma surpresa.
Faremos divulgação através da nossa newsletter e do facebook.

Onde e quando são divulgados os resultados?
Aqui e no facebook, sempre que alguém acertar... ou assim que o pudermos fazer :-)

Quais são os prémios?
Tínhamos previsto alguns milhares de euros em prémios, mas como não conseguimos travar a tempo a discussão entre os vários mecenas desta iniciativa, decidimos ser nós os únicos patrocinadores do evento. Assim, os prémios serão:

1º prémio – 3 CDs áudio; um com todos os poemas do concurso, outro com parte dos outros poemas do blog e um terceiro com a gravação áudio do nosso espectáculo “A de Mozart”.
2º prémio – 2 CDs áudio; um com todos os poemas do concurso e outro com parte dos outros poemas do blog.
3º prémio – 1 CD áudio com todos os poemas do concurso

Um pouco mais sobre o pepQ:
A promoção da leitura e a divulgação dos nossos autores sempre foram os nossos objectivos.
O concurso surge de uma conversa entre nós acerca de como reavivarmos este nosso audio.blog, caído um pouco no esquecimento no segundo semestre de 2010 por não termos tido tempo para lhe dedicar.
Quando pensávamos voltar à nossa regularidade de um texto por semana, surgiu-nos a ideia do concurso. A ideia, pelo menos nestes moldes, é original mas provavelmente não teria surgido se não tivéssemos tido conhecimento de um outro concurso com os mesmos objectivos de promoção da leitura, “Lost Pages Club”, que terminou a sua 1ª edição (esperemos que haja outras), no início de dezembro de 2010.

Assim, esta é uma proposta nossa para 2011. Não tem objectivos comerciais. É apenas um jogo com as palavras dos nossos poetas que visa divulgar a nossa poesia. Nenhum autor foi contactado previamente e se algum não desejar fazer parte do concurso, contacte-nos e verá o seu poema imediatamente removido.
Tentaremos cumprir a regularidade das publicações, quer dos poemas, quer das respostas.
Por vezes a produção e realização dos nossos espectáculos ocupa-nos de tal forma que não nos sobra tempo nenhum, por isso, se alguma semana falharmos, aceitem desde já as nossas desculpas.
Críticas e sugestões serão bem vindas.
Divirtam-se!

Cristina Paiva e Fernando Ladeira