Obriga-se o cronista...




Obriga-se o cronista a manter invariáveis os seguintes adjectivos, quando vierem usados para os seguintes substantivos:
Prelado será sempre virtuoso; cantora será sempre mimosa; jornalista será sempre consciencioso; jovem escritor será sempre esperançoso; patriota será sempre exímio; negociante será sempre honrado; caluniador será sempre infame. As maneiras de quem dá um baile serão sempre amáveis; os convidados sairão sempre penhorados. O folhetinista será sempre espirituoso; o poeta será sempre inspirado. Os irmãos terceiros serão sempre veneráveis. Os sócios de qualquer coisa mercantil serão sempre acreditados. Os meninos recém-nascidos serão sempre robustos. As viúvas serão sempre inconsoláveis.
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Se o ricaço der doze vinténs aos inválidos, este feito será sempre um rasgo filantrópico, e a fortuna dele será sempre abençoada. Não haverá baile que não seja animado, nem jantar que não seja lauto, nem serviço que não seja abundante, ou profuso, para variar. Nenhum homem rico terá amigos que não sejam numerosos. Todas as firmas da praça comercial serão sempre respeitáveis. O voto de qualquer parvoinho será sempre ilustrado; e mais depressa morrerá o cronista do que deixará de ser eloquente o discurso de qualquer Cícero fanhoso. Todo o casamento será próspero. Ninguém poderá morrer que não fique sendo bom cidadão, bom pai, bom marido, e terá tudo bom.



CAMILO CASTELO BRANCO
Dispersos III



voz - Cristina Paiva


sonoplastia - Fernando Ladeira

Pedra-final




Tanta gente,
tantos enredos
até ficarmos para sempre
quedos!

Para sempre? não!
Que outros (mínimos) seres
já trabalham na nossa remoção.


ALEXANDRE O'NEILL
Poesias Completas



voz - Cristina Paiva

música - Nobukazu Takemura

sonoplastia - Fernando Ladeira

O poder da memória (excerto)





(...) dirijo-me para (...) os vastos palácios da memória, onde estão tesouros de inumeráveis imagens veiculadas por toda a espécie de coisas que se sentiram. Aí está escondido também tudo aquilo que pensamos, quer aumentando, quer diminuindo, quer variando de qualquer modo que seja as coisas que os sentidos atingiram, e ainda tudo aquilo que lhe tenha sido confiado, e nela depositado, e que o esquecimento ainda não absorveu nem sepultou. Quando aí estou, peço que me seja apresentado aquilo que quero: umas coisas surgem imediatamente; outras são procuradas durante mais tempo e são arrancadas dos mais secretos escaninhos; outras, ainda, precipitam-se em tropel e, quando uma é pedida e procurada, elas saltam para o meio como que dizendo: ‘Será que somos nós?’ E eu afasto-as da face da minha lembrança, com a mão do coração, até que fique claro aquilo que eu quero e, dos seus escaninhos, compareça na minha presença. Outras coisas há que, com facilidade e em sucessão ordenada, se apresentam tal como são chamadas, e as que as vêm antes cedem lugar às que vêm depois, e, cedendo-o, escondem-se, para reaparecerem de novo quando eu quiser. Tudo isto acontece quando conto alguma coisa de memória. (...)


SANTO AGOSTINHO
Confissões, Livro X


tradução - Arnaldo do Espírito Santo, João Beato, Maria Cristina Castro-Maia de Sousa Pimentel

voz - Cristina Paiva

música - Daniel Maze

sonoplastia - Fernando Ladeira