À volta de um búzio




Dizem que o búzio nos traz
ao ouvido o som do mar.
Mas eu acho que é mentira:
se encosto o búzio ao ouvido
só ouço as ondas do ar.

As ondas do ar me trazem
forte cheiro a maresia.
Mas eu acho que é mentira:
o mar não mora nas nuvens,
nunca em nuvens viveria.

Descem as nuvens no mar
se acaso a chuva acontece.
Mas eu acho que é mentira:
se encosto o búzio ao ouvido,
ouvir o mar me parece.

MARIA ALBERTA MENÉRES
Conto estrelas em ti

voz - Cristina Paiva

sonoplastia - Fernando Ladeira

Canção de maltês




Bati à porta do monte porque sou um deserdado.
E chovia nessa noite como se o céu fosse um mar
entornando-se na terra.
- Quem abre a porta a desoras morando num descampado?
E continha o rafeiro que ladrava, na ponta do meu cajado.
Mas veio abri-la o lavrador com a espingarda na mão,
e pôs um olhar altivo tão no fundo dos meus olhos
que as minha primeiras falas foram assim naturais:
- guarde a espingarda, senhor, sou um homem sem trabalho.
Fui secar-me à lareira.
E a filha do lavrador, que era uma moça perfeita,
ficou a olhar de gosto a minha manta rasgada
e o meu fato de maltês.
E com licença do pai, estendeu-me um canto de pão
com azeitonas maduras.
Não aceitei como esmola; antes roubar que pedir:
paguei com a melhor história da minha vida sem rumo.
Foi uma paga de rei.
Prá filha do lavrador, tinha muito mais valia
a história que lhe contei que o trigo do seu celeiro,
pois estava a olhar de gosto a minha manta rasgada.
E quando o fogo na lareira ia aos poucos esmorecendo
agradeci como é de uso; despedi-me até mais ver
e fui dormir pró palheiro que é palácio de maltês.
Despedi-me até mais ver que a gente da minha raça
mal o Sol tenta nascer ergue-se e parte pelo mundo
sem se lembrar de ninguém.
Despedi-me até mais ver que a gente da minha raça
mal o Sol tenta nascer ergue-se e parte pelo mundo
sem se lembrar de ninguém.
Despedi-me até mais ver que a gente da minha raça
mal o Sol tenta nascer ergue-se e parte pelo mundo
sem se lembrar de ninguém.
Assim me deitei ao canto a esperar pela manhã.


MANUEL DA FONSECA
Obra Poética


voz - Cristina Paiva

música - Pascal Comelade

sonoplastia - Fernando Ladeira

Partir!...




Eu vou-me embora para além do Tejo,
não posso mais ficar!

Já sei de cor os passos de cada dia,
na boca as mesmas palavras
batidas nos meus ouvidos...
- Ai as desgraças humanas destas paisagens iguais!...
Abro os olhos e não vejo
já não ando, já não oiço...
Não posso mais...
Grita-me a Vida de longe
e eu vou-me embora para além do Tejo.

Passa a ave no céu bebendo azul e diz: -Vem!
O vento envolve-me numa carícia,
envolve-me e murmura: -Vem!
As ondas estalam nas praias e vão mar fora,
as mãos de espuma a prender-me os sentidos
chamam no fundo dos meus olhos: -Vem!

- Camaradas,eu vou,esperai um pouco...
Ai,mas a vida nunca espera por ninguém...
E a noite chega vingadora;
o vento rasga-me o fato,
as ondas molham-me a carne
e a ave pia misticamente no ar;
abro os olhos e não vejo,
já não ando, já não oiço
- e fico, desgraçado de ficar!..


MANUEL DA FONSECA
Obra Poética


voz - Cristina Paiva

música - Pascal Comelade

sonoplastia - Fernando Ladeira

Soma



Não te fies em balelas
nem somes mais do que a conta.
Às vezes muitas parcelas
Dão soma de pouca monta...

MANUEL ANTÓNIO PINA
Pequeno livro de desmatemática
Edição: Assírio & Alvim

voz - Cristina Paiva

música: Pascal Comelade

sonoplastia - Fernando Ladeira